Após semanas e meses de discussões, na sexta-feira passada (31) parece que finalmente ficou definida a questão da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva[1] – ainda cabe um apelo ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para uns uma injustiça, uma tragédia, para outros um alívio, uma esperança. Gostaria de avaliar contigo um aspecto deste drama que nos afeta diretamente como cristãos, assim como nos afeta outros movimentos de candidatos de direita ou esquerda… a questão da palavra empenhada.
Uma devida análise jurídica está além da minha capacidade, mas apenas com o intuito de relembrar os leigos, a Lei Complementar nº 135 de 2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa, foi resultado de uma longa campanha que colheu mais de um milhão e meio de assinaturas. Esta lei foi aprovada no Congresso no primeiro semestre de 2010 e sancionada pelo então presidente Lula em 4 de junho de 2010. Diante de contestações, em fevereiro de 2012 o STF decidiu que a mesma era compatível com a constituição.
Este resumo é amplamente documentado. O que gerou tumulto nas últimas semanas foi a aplicação desta lei sobre aquele que é, talvez, o mais conhecido personagem político nestas eleições. Uma vez condenado em segunda instância e por órgão colegiado, Lula tornou-se inelegível por oito anos, segundo a lei que ele mesmo sancionou. Peço que, por um momento, você suspenda sua avaliação pessoal da condenação do ex-presidente. O debate tem sido sobre a possibilidade deste candidato concorrer sub judice, o que significa concorrer sob a condição de que sua condenação possa vir a ser revertida no STF. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral desta sexta-feira encerrou este estágio da discussão.
É curioso, embora não surpreendente, que os mesmos agentes que tenham lutado pela aprovação dessa lei venham agora buscar subterfúgios ou brechas que permitam a um indivíduo esquivar-se da mesma. E, deixe-me acrescentar rapidamente, manobras assim são comuns a políticos tanto da esquerda como da direita. Quantas vezes um candidato promete em campanha que, se for eleito, cumprirá seu mandato até o final somente para no meio do mesmo romper abertamente seu compromisso anterior com o argumento passageiro de que isso faz parte do “jogo político”? Seja com respeito à impugnação de uma candidatura, seja com respeito a quebrar promessas de campanha, seja com respeito a mudar compromissos assumidos, como sociedade estamos sofrendo de uma profunda crise de integridade.
É curioso, embora não surpreendente, que os mesmos agentes que tenham lutado pela aprovação dessa lei venham agora buscar subterfúgios ou brechas que permitam a um indivíduo esquivar-se da mesma.
A própria palavra “integridade” parece fora de lugar em uma era de verdade fluída ou “pós-verdade”. Integridade se refere a estar “por inteiro” em algum lugar ou em alguma posição. Íntegro, então, contrapõe-se a alguém dividido. Muito embora o processo de decisão passe por um período em que opções devem ser avaliadas, o que é condenado aqui é a incoerência entre palavras e ações. No âmbito de nossa política, o que temos com muita frequência é a mesma prática de falar uma coisa e fazer outra; em alguns casos com uma transparência que beira à esquizofrenia.
O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre este tema? O que significa ser íntegro em tempos assim? Qual a relação entre fé e integridade? Davi foi um homem que lidou com política, poder, liderança, bajuladores e corrupção; no entanto, era um homem segundo o coração de Deus (Atos 13.22). É dele o Salmo 15:
1Senhor, quem habitará no teu santuário? Quem poderá morar no teu santo monte? 2Aquele que é íntegro em sua conduta e pratica o que é justo; que de coração fala a verdade 3e não usa a língua para difamar; que nenhum mal faz ao seu semelhante e não lança calúnia contra o seu próximo; 4que rejeita quem merece desprezo, mas honra os que temem o Senhor; que mantém a sua palavra, mesmo quando sai prejudicado; 5que não empresta o seu dinheiro visando a algum lucro nem aceita suborno contra o inocente. Quem assim procede nunca será abalado!
Após perguntar quem pode estar na presença de Deus, ele reponde “aquele que é íntegro”. Ao descrever o íntegro, uma das primeiras características é “falar de coração a verdade”. Esta expressão em si representa muito bem o que é integridade. Se falo a verdade a partir do meu coração, então não há falsidade ou dualidade em mim. É importante ressaltar que para o judeu o coração não era só o centro das emoções, como para nós no Ocidente. Coração seria o equivalente à alma. Assim, falar a verdade de coração significa que a pessoa não só fala a verdade, mas que o que disse vem do mais profundo de seu ser; é o que ele ou ela crê, sente, percebe e com o que está comprometido.
O íntegro mantém sua palavra, mesmo quando sai prejudicado.
No verso 4 Davi afirma que o íntegro “mantém sua palavra, mesmo quando sai prejudicado”. Esta afirmação confronta o que temos visto em nossos políticos e em nossa sociedade em geral. As promessas e os compromissos são feitos até que condições melhores, ou um acordo que me traga maior benefício, surjam. Caso o acordo anterior seja considerado prejudicial, muitas vezes a pessoa simplesmente nega o que afirmou até então e muda de posição. É revelador o fato de que houve uma época onde o “fio de bigode” era tido como um acordo inabalável, já hoje temos contratos cada vez mais complexos, com clausulas cada vez mais rigorosas e, ao mesmo tempo, as rupturas são cada vez mais frequentes. É evidente que acordos e mesmo relacionamentos são cada vez mais descartáveis.
É óbvio que princípios têm aplicações diversas em diferentes circunstâncias, mas o princípio, a essência, não pode mudar.
Tiago também toca nesta questão de integridade. Ele escreveu sua carta ensinando sobre várias áreas do relacionamento humano e com Deus. No capítulo 5, verso 12, lemos:
Sobretudo, meus irmãos, não jurem, nem pelo céu, nem pela terra, nem por qualquer outra coisa. Seja o sim de vocês, sim, e o não, não, para que não caiam em condenação.
Neste caso o texto indica diretamente que aquilo que não for “sim, sim e não, não” implica em condenação. Ou seja, o que afirmamos não pode ser negado logo a seguir. O que rejeitamos não pode ser aceito em condições diferentes. Este modo de pensar aponta para um raciocínio por princípios e não por circunstâncias. É óbvio que princípios têm aplicações diversas em diferentes circunstâncias, mas o princípio, a essência, não pode mudar.
Há muitos outros textos bíblicos que abordam este tema. A lei mosaica, lidando com um povo em formação, com pouca instrução moral e, conforme o registro histórico, dado a mudar de opinião com muita facilidade, afirma em Números 30.2, por exemplo:
Quando um homem fizer um voto ao Senhor ou um juramento que o obrigar a algum compromisso, não poderá quebrar a sua palavra, mas terá que cumprir tudo o que disse.
Já o apóstolo Paulo afirma em Efésios 4.25:
Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo.
Nesta passagem, o argumento de Paulo para deixarmos a mentira é curioso. Ele afirma que devemos falar a verdade por sermos membros do mesmo corpo. Com isso ele dá início a um raciocínio de que a mentira ou falsidade é contrária à comunhão.
Por que a verdade e manter a palavra empenhada são tão enfatizados na Bíblia? Parece-me que uma das razões é a natureza de nossas relações. Caso eu estabeleça uma relação de troca, um negócio, este se mantém enquanto for interessante para ambos os lados – ainda que para se conduzir um negócio seja necessário credibilidade e, portanto, integridade. Mesmo um parceiro de negócios pode eventualmente mudar sua parceria quando esta não for mais interessante.
Já uma relação pessoal ou familiar é, ou pelo menos deveria ser, algo essencialmente diferente. Quando um filho nasce, os pais assumem de imediato um compromisso unilateral com a criança. O bebê não tem nada a oferecer em troca, ele na verdade nem sequer opta por entrar em uma relação de troca. O pai e a mãe assumem uma relação de amor e de integridade unilateral e incondicional. Isso é ainda mais evidente quando um casal tem um filho que exige cuidados especiais, às vezes por anos e anos.
Nestes casos o compromisso assumido é incondicional, não é uma questão de se trocar quando surgir uma proposta mais interessante. Compromissos assim exigem integridade, exigem a verdade, e são destruídos pela mentira. O casamento, em uma perspectiva cristã, se encaixa na mesma categoria. Ao casar, um cônjuge promete cuidar do outro em quaisquer condições, mesmo que o outro não possa corresponder ao cuidado e amor. Neste sentido tive o privilégio de observar o sr. Dieter Steiger, fundador da Chamada no Brasil, cuja esposa, dona Helga, teve Alzheimer muito cedo. Por anos assisti seu esposo saindo com ela para passear, e mesmo quando os cuidados exigiram sua internação eu o vi visitá-la com frequência no lar em que estava internada. Ao conversar com ele certa vez, ele me disse: “Ela não sabe quem eu sou ou mesmo percebe que estou aqui… mas eu sei quem ela é!”. Permanecer com o outro mesmo que este nem sequer perceba é talvez a maior prova de integridade, do valor da palavra empenhada.
Nosso Deus é fiel e cumpre sua Palavra. Podemos contar com ele, mesmo que nem sempre entendamos seus planos. Minha oração é que, contrariando exemplos políticos, você, eu e o povo de Deus sejamos exemplos de integridade. Deixe-me concluir com algumas perguntas que eu creio que poderão nos ajudar a refletir sobre como anda nosso compromisso com a palavra empenhada:
- Quando você diz a alguém que vai orar por ele ou ela… você ora mesmo?
- Quando você diz a alguém que pode contar com você… esta pessoa pode mesmo contar com você?
- Quando você diz que vai estar em algum lugar em determinada hora, o quão importante é para você manter este compromisso?
- Quando você afirma que vai pagar uma dívida dentro de determinado tempo, mesmo que não haja uma multa, você paga mesmo?